A CRIAÇÃO DA TERRA
O que agora é a nossa Terra foi, certa vez, uma aguacenta e pantanosa imensidão. Acima havia o éter, o espaçocelestial, denominado òrun e que era a morada de Olódùmarè, o Ser Supremo, dos Òrìṣà e de outros seres primordiais. A aguacenta imensidão constituía, de certa forma, o local de caça para seus habitantes, que costumavam descer por cordas de teias de aranha formando pontes pelas quais andavam. Conviviam com Olódùmarè vários Òrìṣà; entre eles, Ọbàtálá (também conhecido por Òṣàlá), Òrúnmìlà, Èṣù, Ògún e mais Agẹmọ, o camaleão, criado de confiança do Ser Supremo. Na parte de baixo vivia Olókun, a divindade feminina que governava a vasta expansão de água e os pântanos selvagens. Certa vez, Ọbàtálá, observando essa região, disse: “Todo este espaço não tem a marca de nenhuma inspiração ou coisa viva. Tudo é muito monótono.” Em seguida, foi até Olódùmarè e expôs seu pensamento: “O lugar governado por Olókun é uma mistura de mar, pântano e nevoeiro. Se existisse terra sólida naquele lugar campos, florestas, morros e vales , seguramente ele poderia ser habitado pelos Òrìṣà e por outras formas vivas.” Olódùmarè respondeu: “Sim, seria uma boa ideia cobrir as águas com terra. Mas trata-se de um empreendimento ambicioso! Quem faria esse trabalho?” Ọbàtálá respondeu: “Eu tentarei e farei tudo conforme o Seu desejo.” Com a devida permissão, Ọbàtálá saiu à procura de Òrúnmìlà, que entendia dos segredos da existência, e dele recebeu instruções de como efetuar aquela tarefa. “Estas são as coisas que você deve levar: uma concha cheia de terra, uma galinha branca de cinco dedos em cada pé e um pombo.” Tudo providenciado, Ọbàtálá desceu através das grossas teias e, antes de chegar ao seu final, despejou o conteúdo da concha e, em seguida, lançou a ave encantada, que passou a espalhar a terra por todas as direções, com o pombo transportando todo o material de um lado para o outro. A terra que estava sendo espalhada foi tomando formas desiguais, originando morros e vales. Quando tudo havia sido feito, Ọbàtálá saltou da teia para a terra. Pisou-a e a sentiu segura e firme, mas ainda estéril. Ọbàtálá chamou o lugar onde o trabalho havia sido efetuado de Ifè, que significa “aquilo que é amplo”. De acordo com a tradição foi assim que Ifè, a cidade sagrada desse povo, obteve seu nome. A criação da Terra foi completada em quatro dias, o quinto foi separado para se reverenciar Olódùmarè, que, mais tarde, desejando saber como andavam as coisas na Terra, enviou Agẹmọ para fazer uma inspeção em toda a região. Ao chegar lá, andou cuidadosamente para experimentar a terra. Achando a firme, procurou Ọbàtálá e lhe disse: “Como você pode ver, a Terra está criada, mas ainda falta muita coisa, plantas, árvores e gente para habitá-la. E, mais ainda, há muita escuridão. A terra deve ser iluminada.” Agẹmọ retornou para o òrun e descreveu para Olódùmarè o que tinha visto e ouvido. Prontamente o desejo de Ọbàtálá foi atendido com a criação do Sol. Depois disso, surgiram o calor e a luz no lugar que havia sido do domínio exclusivo de Olókun. Em seguida, Olódùmarè enviou Òrúnmìlà para agir como conselheiro de Ọbàtálá, que levou consigo a primeira palmeira de dendezeiro, o igi òpẹ, para ser plantada. Deu também três outras árvores para serem plantadas Iré, Awùn e Dòdo , que serviriam para extrair alimentos e agasalhos. Como não havia bastante água para ser usada, fez cair chuva sobre a Terra. Com todos os elementos em seu poder, Ọbàtálá complementou a tarefa, equipando a Terra com matas, florestas, rios e cachoeiras. Logo depois foi designado para outro trabalho o de modelar a imagem física daqueles que deveriam habitar toda a Terra criada. Para isso, revolveu o barro e o umedeceu com a água das fontes, modelando, na forma determinada por Olódùmarè, figuras idênticas aos seres humanos. Ọbàtálá trabalhou sem descanso, vindo a ficar esgotado e com muita sede. Buscou socorrer-se com vinho de palma, o ẹmu. Assim sendo, foi buscar, entre as palmeiras do dendezeiro, o líquido para aliviar a sua sede. Ao extrair o líquido, deixou-o fermentar e depois bebeuo por longo tempo até que sentiu seu corpo amolecer e tudo à sua volta girar. Ao conse guir manterse de pé, voltou ao trabalho, mas sem as condições iniciais. Com isso, vários modelos das figuras ficaram desajeitados, disformes, com pernas e braços tortos. Outros apresentavam as costas altas, cabeça desproporcional e estatura irregular, idênticos a anões. Mesmo assim, todos foram colocados em posição apropriada, aguardando a presença do Ser Supremo para dar vida a todas as figuras inanimadas.
Todos viviam uma vida pacífica em torno de Ọbàtálá, que era o seu rei e orientador. Mesmo sem as ferramentas adequadas, pois ainda não existia o ferro no mundo, o povo plantava e semeava. As árvores se multiplicavam, e o povo crescia juntamente com a cidade de Ifè, seguindo tudo conforme a sua determinação. Assim, Ọbàtálá decidiu voltar ao òrun, tendo sido preparada uma grande festa para a sua chegada. Ali, junto aos demais Òrìṣà, ele relatou as coisas existentes no novo mundo e todos se mostraram decididos a conviver com os seres humanos criados. Desse modo, muitos Òrìṣà partiram para a Terra, mas não sem antes ouvir as instruções de Olódùmarè quanto às obrigações de cada um. Deixou a seguinte mensagem para todos: “Quando vocês se fixarem na Terra, nunca se esqueçam de seus deveres para com os seres humanos. Todas as vezes em que eles estiverem suplicando por ajuda, observem com atenção o que estão pedindo. Vocês serão os protetores da raça humana. Ọbàtálá foi o primeiro que desceu e secou as águas. Ele será o eterno governante deste mundo e a minha se gunda pessoa, Òrúnmìlà será o meu porta-voz pela condição de ser conhecedor dos destinos de todos os habitantes da Terra. Cada um de vocês terá uma responsabilidade especial para preencher os espaços da Terra.” Ao dizer isso, todos se movimentaram para descer ao novo mundo. Ọbàtálá ficou por algum tempo no òrun, não seguindo com os demais. Algumas vezes, quando desejava saber como as coisas estavam caminhando em Ifè, retornava para uma visita.
NOTAS
Olódùmarè Nome do Deus Supremo do povo yorubá. Olódù – Senhor do Poder, marè – imutável, incomparável, absolutamente perfeito. Pos- sui outros títulos de acordo com os seus atributos.
Ọbàtálá Também chamado de Òṣàlá, e, em algumas narrativas de odù, citado apenas como Òrìṣà. A palavra significaria, a princípio, o rei da roupa branca, que simboliza a sua pureza ética. Porém, a primeira parte do nome, Ọbà, não indica que seja rei devido ao tom grave da vogal que pode sugerir uma outra ideia, a abreviação da expressão, Ọmọba(ba) kan, as crianças do mesmo pai, ou seja, como criadores dos seres humanos, somos todos filhos do mesmo pai. A segunda parte do nome, tálá, pode ser a forma reduzida de ti àlà; porém, mais uma vez, o tom das vogais não corresponde ao significado. Assim, tálá poderia vir de ti ó lílá, que significa o que é grande. Verifica-se a importância dos tons das vogais, representados pelos acentos, que, além de indicarem formas de aglutinação, revelam diferenças para uma mesma palavra.
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